Relatos da quarentena

Sempre fui uma pessoa muito regrada. Quando bebê, dormia às 20h e acordava às 6h todos os dias como uma reloginho.
Fui crescendo e lembro de não precisar de despertador para acordar para a escola até meus 10 anos.
Entrei para o colégio militar (por vontade própria, sem pai militar) e as regras passaram a ser minha razão de viver, meu norte, minha segurança. 
Se engana quem pensa que regras aprisionam. As regras, na verdade, libertam a mente para pensar no que realmente importa. No caso do colégio, seguíamos as regras de educação, postura, higiene pessoal, asseio, pontualidade e estávamos livres para gastar nosso tempo pensando em estudar ou tornar-nos militares (o que significava estudar também).
Pensa, uma adolescente que não precisa perder tempo escolhendo a roupa acaba tendo muito mais tempo para refletir.
Vivíamos em um sistema de erros e acertos e, para cada erro, sabíamos a punição exata que receberíamos:
- fivela não está lustrada: perde 0,25
- chegou atrasado no colégio: perde 0,5
- está com um brinco maior do que deve: perde 0,25

E assim por diante. Tínhamos um manual com os possíveis erros que podíamos cometer e quanto eles nos custariam para nossa reputação ou, melhor, para a nossa nota do comportamento.
Quer vida mais fácil que esta? Erros e acertos listados com valores a perder ou ganhar dependendo do que se faz.
Ah, se a vida fosse assim tão fácil.... mas não é!
E agora, estamos nesta quarentena e precisamos refazer a nossa lista individual de erros e acertos.
O que pode ou não pode ser feito neste momento?
O que precisamos fazer para sobreviver? Para que os outros sobrevivam?
Na minha primeira semana trancada em casa, não sabia muito bem o que fazer. Tomei vinho em plena quarta ao meio dia e dormi a tarde toda.
Gravava vídeos para o canal de gastronomia, dava minhas aulas de inglês e dividia o resto do tempo me preocupando, vendo seriados, comendo, vendo o Mandetta e acreditando que a situação passaria rapidamente.
Mas não passou.
Percebi que eu teria que me organizar ou a minha vida seria uma bagunça.
Até esquecer de escovar os dentes de manhã eu esquecia.
Percebi que tudo o que fazia por mim antes da quarentena era para sair de casa:
- escolhia a roupa.
- me vestia;
- passava maquiagem;
- escovava os dentes;
- comia;
tudo pensando na saída e na hora que voltaria.
Mas, se eu não ia sair? Para que escovar os dentes? Para que comer agora se eu podia comer depois, em qualquer horário. Para que tirar o pijama, se eu posso só trocar a blusa e dar aula assim?
Só que passou uma semana e eu me vi infeliz. Afinal de contas, eu sempre fui regrada e, na maioria das vezes, por escolha própria.
Assim, passei a criar minhas regras da quarentena. Criei metas incríveis de estudo, de organização, de trabalho, de tudo. 
A segunda semana, cheia de metas, também foi inteiramente infeliz. Riscava as atividades feitas da minha lista sem que isso me trouxesse alegria. Fiquei muito ansiosa em cumpri-las e fazia tudo por obrigação e não por prazer.
Foi então que percebi que não podia criar, para a quarentena, as mesmas regras que eu criaria se estivesse vivendo uma vida normal, pois eu não estava.
Então, adaptei tudo, passei a criar metas semanais, a me obrigar a trocar de roupa todos os dias, a comer nos horários em que eu comia antes e a me exercitar com frequência diária, mas sem hora marcada. Afinal de contas, pra que marcar hora se os compromissos estão tão desorganizados?
Foi preciso tempo, adaptação, entendimento e muito amor próprio para que eu pudesse ajustar minha vida a esta quarentena.
Foi na quinta semana de isolamento que eu comecei a ver o lado bom de tudo isso e deixar o stress de lado.
Porém, esta quarentena me mostrou que cada semana é um desafio e amanhã começo outra semana. Como ela será? Não sei, mas espero que seja boa.
Por sorte, eu tenho os melhores alunos do mundo que me enchem de alegria a cada aula e me fazem transbordar de orgulho por estarem evoluindo lindamente neste período turbulento.
Por sorte, tenho uma casa na praia que me fez reencontrar o sol que insiste em não ser presente no meu apê na cidade.
Por sorte, eu tenho uma família que me apoia, me entende, se preocupa e me enche o saco todos os dias.
Por sorte, minha solidão não é tão sozinha assim.
E as regras da minha quarentena, como ficaram?
Ficaram assim:
- comer menos carne;
- estudar maneiras de fazer meus alunos melhorarem com aulas a distância;
- ler romances que me agradem;
- acordar no horário de antes de a quarentena começar;
- fazer ballet 2x por semana;
- fazer outra atividade física 3x por semana;
- me amar todos os dias;
- ajudar ao próximo da maneira que der;
- ser feliz pelas pequenas alegrias do dia;
- agradecer;
- escovar os dentes três vezes ao dia;
- me alimentar nos horários certos;
- mandar msgs para os amigos e familiares para ver se eles estão ok;
- analisar o que eu quero que fique e o que eu quero que vá quando essa quarentena passar;
- fazer tudo com calma, pois ganhei muito tempo sem me deslocar por aí;
- refazer as regras a cada semana com as adaptações necessárias;
- iniciar a semana com esperança e acreditando que sim, isso vai passar, mas talvez demore.
Fiquem bem! Se cuidem! Se amem!

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